Crônica: BOLSA X BOLSA – a peleja da estudante Nicy e o senador Lourival Batista

Crônica: BOLSA X BOLSA - a peleja da estudante Nicy e o senador Lourival Batista

“Nunca tive medo de correr atrás dos meus sonhos.”

  • por Nicy de Jesus (1)

O ano era 1983, eu tinha apenas onze anos.

Todas as moças e rapazes de um certo padrão estudavam na Escola Cenecista Arnaldo Dantas, dirigida por uma grande mestra e referência na cidade. O sonho de todo jovem era estudar lá e o meu não seria diferente.

Após concluir a quarta série do ensino fundamental menor, a ideia de estudar lá nem era cogitada até que, sem querer, ouvi uma conversa entre comadres na porta de casa. Elas falavam de um certo político que estava dando bolsas para estudar na tão sonhada escola.

Após as senhoras concluírem a conversa e seguirem cada uma para suas casas (porque eu não era doida de interromper a conversa dos adultos), perguntei a minha mãe sobre a possibilidade de ganhar a tal bolsa.

Ela explicou que, para ela, seria inviável ir até lá. O tempo da entrega de suas costuras estava se esgotando e não podia deixar suas clientes esperarem.

A casa do tal político era situada na Avenida Rio Branco, em Aracaju. Acredito, se não me engano, que hoje é onde está localizada uma escola da rede particular de ensino.

Mamãe me deixou bem à vontade e falou que se dona Eliete quisesse me levar, eu poderia ir e arriscar o pedido. Não deu outra, corri em direção à casa dela. Fui tão rápido que “meus pés batiam na bunda”. Nunca tive medo de correr atrás dos meus sonhos.

Ao chegar à casa de Dona Eliete, uma conceituada costureira da redondeza (não melhor do que mamãe, é claro), falei, quase botando a língua para fora, que minha mãe havia autorizado eu ir com ela até a casa do político se não fosse incomodá-la, óbvio. Ela respondeu que não fazia objeção nenhuma e, pronto! Voltei feliz da vida.

A noite foi pequena para aguardar até o tão sonhado pedido.

Às 5h da manhã, eu já estava pronta. Alguns minutos depois, dona Eliete bateu na porta de casa e, ansiosa de natureza, abri sem hesitar. Além dela, estava também dona Ivone, amiga da família de longas datas.

Sinto um frescor gelado no rosto e cabelos ao vento na gostosa travessia das tototós – nem o barulho do motor da embarcação ou as conversas paralelas dos usuários eram capazes de me tirar do transe. Era tudo tão mágico que entre o fechar e abrir de olhos, já sentia a embarcação diminuir a velocidade e uma leve pancada ao ancorar na escadaria. Chegamos a Aracaju.

Uma pequena caminhada pelo cais observando as brumas do rio Sergipe, com o brilho peculiar dos primeiros raios de sol e, lá estávamos atravessando as duas vias. Agora era só aguardar “o homem”.
De longe, observei que já havia algumas pessoas esperando. Dona Eliete tratou logo de perguntar a ordem de chegada de cada um, agora só era esperar.

Após uma hora de espera, uma leve chuva começou a cair e de imediato uma senhora de porte elegante e uma voz suave nos convidou a entrar. Abriu um grosso portão de ferro que dava para uma estreita salinha e, pedindo silêncio, comunicou que ali havia gente dormindo.

O pedido realmente foi cumprido. Ouviam-se somente alguns cochichos e o leve tique-taque do relógio na parede.

Depois de algum tempo, o homem acordou e sua secretária nos avisou que começaria a atender logo após tomar o seu desjejum matinal. Achei essa palavra tão chique que ela não saía da minha cabeça.

Perguntei à bondosa amiga de minha mãe se ela poderia entrar comigo, mas infelizmente ela se negou porque também precisaria garantir a bolsa do filho, ou seja, eu teria de enfrentá-lo sozinha.

Pela ordem de chegada, eu era a sexta a entrar. Finalmente chegou a minha vez. Quando dona Eliete saiu pela porta de madeira, que ficava na parede lateral da pequena saleta, deu sinal com a cabeça me mandando entrar.

Ao passar por aquela porta, mais pareceu que entrei por um portal.

“O homem” não estava, deveria ter saído por alguns instantes até o banheiro. Deparei-me com enormes estantes cheias de livros até o teto e uma parede composta somente de diplomas emoldurados que destacavam um nome em negrito. Sobre um enorme birô de madeira envernizado, suportes para canetas, livros e miniaturas das bandeiras de Sergipe e do Brasil. Havia também uma pequena placa de metal escrito: Lourival Baptista.

Eu estava completamente encantada, até que uma voz de tom forte e firme surgiu logo atrás de mim:

– Pode mandar sua mãe entrar.

Eu girei o corpo e vi um senhor de estatura mediana. Cabelos e bigode esbranquiçados.

– Eu vim sozinha mesmo. – Respondi.

Ele deu um breve sorriso e falou:

– Pois bem, sente-se menina corajosa! Daí em diante a prosa tomou gosto.

– O que você faz sozinha aqui?

Eu, que não tinha papas na língua, tampouco noção do que viera a ser sua posição na política de Sergipe, não hesitei respondê-lo.

– O senhor acha que tudo é fácil para gente? Que acorda tarde como o senhor e que a uma hora dessas já tomou o seu tal de desjejum matinal e fica aí sentadinho numa mesa bonita como essa?

De imediato, ele soltou uma gargalhada de doer os ouvidos, seguida de uma pergunta:

– E você, já comeu?

– Claro que não, né? Sabe que horas saí de casa? 5h da manhã! E o senhor aí de sono solto! – retruquei.

Nesse momento, ele chamou a secretária e pediu que ela trouxesse algo para eu comer. Não demorou muito e ela apareceu com uma bandeja, trazendo pão de queijo, biscoito e café com leite. Minha boca salivou ao ver tantas gostosuras. Enquanto comia, ele me olhava atentamente.

– E essa bolsa, não chega não, é? – perguntei.

Ele escolheu alguns papéis para assinar e perguntou se eu estava satisfeita. Acenei com a cabeça que sim.

Chamou a secretária mais uma vez pedindo que ela retirasse a bandeja e disse:

– Pronto, está aqui sua bolsa de estudos, mas não fale a ninguém aí fora. Gostei muito de você e por isso estou ofertando dois anos para que estude de graça, muito mais do que estou dando para as outras pessoas.
Olhei atentamente para ele e respondi:

– O senhor me faz vir da Barra dos Coqueiros para pegar um papel? Eu vim aqui foi para ganhar uma bolsa de verdade porque na escola onde quero estudar, não aceitam as bolsas feitas de perna de calça jeans que a minha mãe faz na máquina dela!

Lourival Baptista quase caiu da cadeira de tanto rir. Desta vez, a secretária nem precisou ser chamada e foi logo perguntando o que estava acontecendo.

Assim que ele se acalmou, pediu para ela revirar as coisas dele e trazer uma bolsa para mim que servisse para a escola.

Ela trouxe uma bolsa preta muito bonita escrito: Congresso de medicina. Pense na minha felicidade! Ao me presentear com a bolsa, ele explicou direitinho que o que me dava o direito de estudar não era a bolsa de carregar os livros, e sim o documento. Trocamos um longo abraço e ele pediu que vez ou outra eu aparecesse para visitá-lo.

Quando saí do escritório, as pessoas à espera estavam enfurecidas porque, em média, cada um passava cerca de quinze a vinte minutos.

Eu permaneci quase duas horas com ele E, SABE QUE NEM NOTEI?

  • Nicy de Jesus escreve aos domingos na Tribuna da Praia.

(1) Esses e outros textos você encontrará na pág.
https://m.facebook.com/poetanicyalves/

1 comentário


  1. Que crônica incrível, leve, engraçada e cheia de lições que foi escrita! Simplesmente Amei e minha admiração por essa escritora Nicy é imensa!

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