O BRASIL, A COVID-19 E A FILOSOFIA IGNORANTE

O BRASIL, A COVID-19 E A FILOSOFIA IGNORANTE

por Saulo H. S. Silva (Doutor em Filosofia e Professor da UFS)

Imagem: Francisco Goya (1746-1828) “O Sono da razão produz monstros”

É parte da crise da modernidade a ideia segundo a qual a filosofia estava em estado terminal e ensimesmada em decretar o seu próprio fim. O cientificismo exacerbado, o desenvolvimento tecnológico e sua suposta inutilidade frente à dinâmica da vida contemporânea fariam da antiga mãe das ciências uma espécie de estranha no ninho. Nesse caso, a inutilidade da filosofia é outra que aquela tratada por Platão, quando Adimanto questionara a Sócrates acerca da inutilidade dos filósofos para as cidades (A república, livro VI). Aqui, a inutilidade está ligada ao desapego pelo conhecimento na cidade corrompida; no mundo contemporâneo, a inutilidade da filosofia estaria ligada à sua insuficiência frente às ciências e ao avanço da técnica, ao fim da filosofia de sistema, que a pulverizou em diversas disciplinas especializadas, e às transformações da vida social determinadas pelo par consumo-produção. A não adequação a esse ambiente parecia orientar para um cenário de saída da filosofia, de império da razão instrumental e da novidade científica orientada pelo mercado.

As críticas à Filosofia Moderna demarcam o principiar do pensamento contemporâneo. Afinal, a mesma nunca deixou de ser entendida como uma investigação presa à tentativa de unificar as respostas por meio de um pensamento contornado por certa arquitetônica do saber. A saída desse modelo de se fazer filosofia decretaria também o seu fim, denotando a sua auto-superação, sua insuficiência frente às descobertas das ciências e a incapacidade de unificar o plural viver contemporâneo. Sobre isso, o filósofo polonês Leszek Kolakowski, na obra Horror metafísico (1988), afirma que a filosofia: “seguramente e felizmente pode sobreviver à sua própria morte mantendo-se ocupada em provar que de fato morreu”; além disso, “um filósofo moderno que nunca experimentou a sensação de ser um charlatão é tão superficial que sua obra não merece ser lida”. No entanto, é bem verdade que no cenário mundial da filosofia, a crítica da racionalidade moderna conduziu a elaborações filosóficas revolucionárias, basta pensarmos nas contribuições de Nietzsche, Wittgenstein, Husserl, Gramsci, Sartre, Derrida, Deleuze, Rorty, Foucault, Habermas, Judith Butler, Achille Mbembe, para citarmos apenas alguns que me veem à memória.

No Brasil, essa orientação não passou de uma caricatura das diversas perspectivas de superação da filosofia europeia tradicional. Assim, a filosofia que se formava no país também afirmou esse ocaso, mas sem uma apropriação adequada dos problemas que esse tipo de orientação envolve, permanecendo firme nos velhos e bons comentários, importantes, mas limitados aos restritos círculos acadêmicos e sem uma conexão direta com a opinião pública. O negar a si mesmo tem que ser ao menos autofágico porque afastar-se das ideias que estão na ordem da discussão, sem construir outro projeto ou reflexão filosófica profunda sobre o próprio Brasil, é abrir a possibilidade para que aventureiros ocupem o espaço inerte. Obviamente que a ditadura militar imprimiu um pessimismo muito forte, obras de grandes filósofos do século XX tratam do fim da filosofia, sua ausência no currículo escolar brasileiro aprofundava a desilusão. Ao problema de Paulo Arantes sobre a inexistência de uma filosofia brasileira, podemos propor: para que uma filosofia brasileira se a mesma estaria em estado de autoderrisão?

Mas, em nossa época, podemos pensar, se a filosofia estava rindo de si mesma, por que “de repente” uma dita “filosofia” está aí dominando as orientações educacionais do MEC, os contornos gerais das políticas do Palácio do Planalto e a atuação da chancelaria brasileira? A esse respeito, é sintomático que parte significativa da vida política e social brasileira tenha elegido um astrólogo embusteiro para o papel de “o filósofo da nação”; o qual dá as cartas, demite ministros e vai moldando a feição da sociedade em torno de confabulações grotescas. Não é por acaso que o “filósofo brasileiro” seja uma pessoa que acredita na terra plana, que classifica Albert Einstein de picareta, advoga serem os refrigerantes adoçados com fetos abortados e até mesmo que haja um plano comunista em curso e bem sucedido para dominar o mundo e o atual presidente seria o bastião da reação planetária. Mais recentemente, contra a Organização Mundial da Saúde (OMS), a comunidade científica e contra todas as evidências da pandemia de Covid-19, o nosso Rasputin afirmou que a doença não existiria e que seria a “mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana” (CartaCapital, 23/03/2020). Após esse comentário, o presidente brasileiro também passou a assumir de forma mais firme uma postura negacionista da doença e do caos sanitário que ela tem causado em diversos países, e que poderá se repetir no Brasil. Tudo não passa de uma “gripezinha”!

A pior ignorância é aquela que se traveste de racionalidade! E contra a ignorância e a irracionalidade das posições só a boa filosofia pode combater. Isso porque os homens não vivem sem ideias, sem a necessidade de ideologias, como Cazuza bem nos lembrou há décadas atrás… Independente das escolas, dos debates profundos, dos relativismos, das orientações discordantes da filosofia, do aprofundamento da explicação cientificizante, as pessoas continuam com as mesmas necessidades de “filosofias” as quais, no mínimo, forneçam estruturas de pensamentos coerentes e válidas sobre o mundo natural, a moral e a política. Então, onde existe um vazio de ideias, alguém ou alguma coisa tende a preenchê-lo; ou melhor, relembrando Goya, “El sueño de la razón produce monstruos”.

Enfim, no Brasil, esse vazio foi em partes preenchido por quem menos era afeito ao efetivo filosofar, uma investigação rigorosa, comprometida com a veracidade daquilo que discorre e não com retalhos de preconceitos oriundos de uma mente obscurantista. Fica a lição, a filosofia não morre, mas da sua ausência brota a deplorável ignomínia!

Publicado originalmente em: https://www.comunidadedasletras.com/2020/04/o-brasil-covid-19-e-filosofia-ignorante_6.html?m=1

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