Crônica: A BANDA

Crônica: A BANDA

Entre boas risadas e causos reportados de sua infância, quando saíamos juntos, o caminho se tornava muito melho … (1)

* por Nicy Alves

Toda a minha infância foi marcada pelas reuniões de família nos finais de semana. Eram momentos em que os primos se encontravam e essas lembranças jamais serão esquecidas.

Apesar da família grande, uma das irmãs de mamãe sempre marcava presença nos finais de semana. A tia Maria era parceira para todas as horas e aventuras.

Conhecida por não ter papas na língua, falava tudo que vinha à cabeça sem o menor pudor. A todo instante mamãe a repreendia e fazia questão de mencionar que havia crianças por perto, que ela segurasse sua língua.

Entre boas risadas e causos reportados de sua infância, quando saíamos juntos, o caminho se tornava muito melhor e chegávamos muito mais rápido ao nosso destino.

Quando isso não acontecia, a visita à casa de tia Maria nos finais de tarde era certeira. Era o ponto preferido de encontro entre os primos.

Enquanto davam comida às galinhas no quintal, mamãe conversava com tia Maria que, cá entre nós, sempre escarrava enquanto falava e a corrida desenfreada das galinhas para ver quem pegava primeiro tal iguaria fazia parte daquele momento.
Mamãe sempre a xingava em voz baixa:
– Nojeira da peste, Maria! Quem come suas galinhas é a gota, não eu.

Tia Maria, que não era de ficar calada, retrucava:

– É, mas os ovos você bem que gosta de comer com um cuscuzinho né, cachorra? (xingamento carinhoso entre as duas)

E assim, dentro da casa se ouviam boas gargalhadas entre tosses e pigarros de minha tia (ela fumava demasiadamente).

Enquanto isso, os primos colocavam todo o assunto em dia e, com certeza, grandes projetos eram elaborados.

Numa dessas tardes, estávamos reunidos na cozinha o meu irmão Fernando, meus primos Vilma e Jackson (ambos filhos de tia Maria), minhas outras primas Paulinha e Netinha e eu. Papo vai e papo vem, resolvemos fomentar os talentos embutidos em cada um de nós. Lançamos a ideia de criar uma banda musical e, é claro, eu seria a vocalista. Achava-me a mais talentosa entre todos, modéstia à parte.

Fernando seria o baterista e os demais escolheriam os outros instrumentos. Depois de muitas sugestões, escolhemos o nome da banda: Garotos Dourados! Nome que, com certeza, brilharia por onde passasse.

Mas… Onde íamos encontrar os instrumentos para dar vida à banda?

Olhei ao nosso redor e, instantaneamente, o olho bateu nas tampas e panelas de tia Maria que ficavam penduradas no gancho no canto da cozinha (ela fazia questão de deixá-las brilhando!).

Com certeza era um tipo de status da época porque era difícil não encontrar nas casas. Suspensas ou de chão, as “baterias”, como eram chamadas, marcavam presença em todas as cozinhas.

As baquetas eram as colheres de pau que, entre um ensaio e outro, perdiam parte de sua composição.

Como não existia banda sem música, Fernando, ou melhor, Nando, colocou em pauta a necessidade de criarmos nossas próprias letras musicais . Este seria o diferencial da nossa banda. E foi com a missão de criar a música que alavancaria a banda no mundo musical que fomos cada um para suas casas. Lembro-me de que ficava horas e horas rabiscando a tal letra e como o tino de criação não chegava, rasgava a página do caderno, amassava e jogava na parede até que os gritos de mamãe me ordenasse fazer a atividade da escola.

Ao folhear o livro, uma imagem me chamou a atenção – um circo bem colorido e um palhaço no picadeiro. Logo abaixo, letras que se tornavam versos, diziam:“Faço versos pro palhaço que na vida já foi tudo. Foi soldado, carpinteiro, seresteiro e vagabundo.”

Pronto! As lâmpadas se acenderam. Era tudo o que eu procurava. A música que ia estourar já veio pronta! Imediatamente comecei a reescrevê-la no caderno, afinal de contas, tudo tinha de parecer talento natural.

No final do dia seguinte, no horário marcado, lá estava eu de canudo na mão, toda imponente. Tinha a certeza de que dentre todas as músicas apresentadas, a minha seria a escolhida.

Não deu outra… Quando meu irmão pegou as folhas de caderno e começou a ler a letra da música, olhou para mim com o semblante de felicidade.

– Poxa, Didice! Era disso que eu estava falando! Caramba, isso é que é uma música! – ele respondeu utilizando um apelido carinhoso pelo qual me chama até hoje.

Pavão era pouco para minha vaidade. Com um sorriso sarcástico no rosto, endossei as palavras do meu irmão.

– Pois é, né? Quebrei a cabeça o final de semana inteiro, mas tá aí. Espero que faça sucesso! Minha parte eu fiz.

Nesse momento, com o olhar esbravejante de Vilma, Jackson, Paulinha e Netinha, o meu irmão não se conteve e perguntou:

– Minha irmã, me diga uma coisa: como você fez essa letra tão linda?

Não hesitei e prontamente respondi. Sabia que essa pergunta surgiria mais cedo ou mais tarde.

– Ah, meu irmão, eu sonhei!

– Mas que sonho fantástico! Parabéns, minha irmã!

Agradeci e começamos a ensaiar.
Dias se passaram, as férias acabaram e o retorno às aulas seria na semana seguinte. Os ensaios ficaram para os fins de semana.

Quando tudo parecia perfeito e a letra da música estava na ponta da língua de todos os membros, algo surpreendente e trágico aconteceu. O “dito cujo do livro” que foi minha fonte de inspiração, parou nas mãos do meu irmão justamente na casa de tia Maria (até hoje não entendi a manobra do destino).

Entre uma folheada e outra, do nada, a ilustração que eu tinha sugerido para a capa do “LP” surgiu bem na frente dos olhos do meu irmão em meio à reunião da banda. Lembro-me até hoje do olhar dele que me fuzilou petrificante.

Fingindo não saber o que estava acontecendo, perguntei:

– O que foi, meu irmão? O que está acontecendo? Por que você está assim? Após alguns segundos que, para mim, transformaram-se em horas, ele respondeu:

– Venha olhar isso aqui, Didice! Leia para todo mundo ouvir!

E com uma gagueira que surgiu do nada comecei a ler:

– Va-vai co-começar…

– Didice, você me enganou! Falou que tinha escrito essa música e mangou da minha cara, rapaz! – ele esbravejou em lágrimas.

Eu fiquei paralisada, não sabia o que fazer ou falar. Os meus primos caíram na gargalhada e eu não tive outra alternativa senão cair na gargalhada também. Meu irmão, “tadinho”, desapontado com a arte copiada de sua irmã, resolveu acabar COM A BANDA ANTES MESMO DO PRIMEIRO SUCESSO.

* Nicy Alves escreve aos domingos na Tribuna da Praua

(1) Esses e outros textos você encontrará na página – https://m.facebook.com/poetanicyalves/

1 comentário


  1. Voltei ao passado.
    Lembro-me muito bem daquele dia, Didice.

    Responder

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