- por Nicy Alves
Sempre gostei de participar de festas que envolviam a escola. Minha mãe, coitada, “virava-se nos trinta” para providenciar roupas, luvas e todos os adornos, a depender do tipo de apresentação.
Nas quadrilhas juninas, eu sempre escolhia ser a noiva. No desfile da garota estudantil, era necessário, no mínimo, cinco trocas de roupas (sempre tinha pódio). E como não podia faltar, tinha também o desfile cívico.
Eu adorava toda aquela emoção. O barulho da banda, o rufar dos tambores, as batidas no compasso dos pratos, os aplausos. Sentia-me uma personalidade no momento em que marchava na avenida.
Em um determinado ano, minha mãe avisou que eu não iria desfilar por motivos financeiros e que, quando o convite chegasse à escola, eu deveria ficar quieta no meu canto – nada disso aconteceu. Quando a diretora da escola chegou à sala e perguntou quem gostaria de sair na avenida, fui a primeira a levantar a mão. Como boa leonina que sou, sempre saí numa posição de destaque.
Não sei como, mas a notícia chegou aos ouvidos de mamãe. Acredito que alguém contou ao meu irmão, que também estudava na mesma escola. Dessa vez, não me dei muito bem. Depois de muitas broncas, mamãe avisou que não iria me ajudar em nada e que, se eu quisesse, teria de correr atrás do que fosse precisar.
Faltando quatro dias para o desfile, mamãe lembrou que eu ainda não tinha lavado o meu conga para usá-lo no domingo. Fui até o quintal, peguei uma bacia, sabão, escovão e comecei a lavar. Naquele momento, começou a chover. Perguntei a mamãe o que eu deveria fazer, pois eu queria que o conga secasse rápido.
— Coloque perto do fogão à lenha. – ela recomendou. Assim o fiz. Peguei o par de congas e coloquei emborcado em cima da chapa e voltei a brincar. Não me atentei que ainda havia muita brasa no fogão.
As horas se passaram e não tive o mínimo cuidado de olhar a engenhoca (risos). No final da tarde, quando ainda estava jogando queimado na rua, mamãe me chama e manda eu ir olhar o tal sapato.
— Já enxugou, foi? Tão rápido!– corri até o fogão. Ao chegar lá, deparei-me com uma cena que jamais esquecerei. Não existia mais congas e sim duas bolas de fogo.
— Onde a senhora colocou o sapato? – indaguei mamãe.
— Seu sapatos são essas duas bolas de fogo que estão queimando ali. – ela apontou para as chamas. Sinceramente aquilo foi desesperador. Comecei a chorar sem parar e no meio do desespero, questionei:
— E agora, o que eu faço?
E com um tom irônico, mamãe respondeu:
— Vai pedir ao prefeito!
Passei a noite inteira com aquela frase na cabeça. Assim que acordei, tomei café da manhã, saí de fininho e, adivinha? Fui à procura da casa do tal prefeito (risos). Após algumas informações no percurso, encontrei a casa. Na verdade, como sou nativa, já tinha noção de mais ou menos onde ficava. Apesar de tão pequena, eu era muito esperta.
Ao chegar a casa, fui informada que ele encontrava-se na prefeitura. Não pensei duas vezes. Fui lá.
Logo na entrada, fui orientada a falar com a secretária, dona Izabel. Em prantos, contei toda a história. Ela manteve seu olhar preso a mim e, do nada, caiu na gargalhada. Fiquei sem entender, mas continuei a falar.
— E agora, moça? Hoje já é quinta-feira e o desfile é domingo!
Ela estava se acabando de rir por dentro, mas pediu para que eu sentasse no sofá de espera e, veja o que aconteceu: cada funcionário que chegava à recepção perguntando o que aquela garotinha estava fazendo ali, ela pedia para eu contar minha infeliz história. Um a um, saíam dando gargalhada. Mas, na verdade, eu estava pouco “me lixando”, desde que o prefeito me desse o bendito sapato.
Após algum tempo de espera, chegou um homem alto, barba fina e óculos. Entrou na sala onde havia uma placa com o nome “Gabinete”. Algumas pessoas o seguiram, inclusive a secretária.
Passaram-se alguns minutos e, de repente, ela saiu da sala com o rosto vermelho (vocês nem imaginam o porquê, né?) e pediu para que eu entrasse.
Lembro-me como se fosse hoje. Sala gelada, dois homens barbudos – o mais alto atrás do birô e um outro mais barbudo ainda, à frente.
O prefeito, com uma voz extremamente grossa e marcante, falou: – Senta aí, menina conte sua história! – De novo? – retruquei.
— Aposto que aquela mulher já contou, mas eu vou contar novamente. – e lá vou eu repetindo tudo. Não deu outra, eles“se papocaram” de rir. Não tive outra reação a não ser olhar seriamente para os dois e baixar a cabeça.
O prefeito vendo tal cena, parou de rir. Deu sinal para que o assessor parasse de rir também e disse para eu não me preocupar.
— Mago, amanhã nem que você vá em Aracaju somente fazer isso. Compre os sapatos dessa menina!
— Tá certo Natanael, vou comprar sim.– o assessor respondeu.
Isso foi música para os meus ouvidos.
— Quanto você calça?
— O quê?
Ele continuou perguntando:
– O seu número de calçado. Como vou comprar um sapato se não sei o número do seu pé?
— Ah, entendi.
Eu precavida que era e, com uma carta na manga, puxei um pedaço de barbante do bolso. Papai sempre mediu o tamanho dos nossos calçados assim. Não deu outra – as risadas eram tão altas que as pessoas das outras salas vieram ver o que estava acontecendo.
Como na sexta-feira era feriado na cidade, ficou combinado de que os sapatos seriam entregues no bar de Mário, que ficava vizinho à prefeitura.
Finalmente fui para casa e, ao chegar, mamãe perguntou: – Onde você estava, menina? Posso saber? De hoje que eu grito por você!
— Eu estava na prefeitura! – respondi. Ela não acreditou e começou a rir.
Aquela noite foi uma eternidade. Por diversas vezes abri os olhos para ver se a luz do sol já raiava.
Ao amanhecer, fui ao bar de seu Mário no horário combinado.
— Seu Mário, o seu Mago, que trabalha com o prefeito Natanael, deixou algum pacote para mim?
Com uma garrafa de cachaça na mão e o copinho de pinga na outra, ele respondeu:
— Minha fia, num deixaram aqui nada não. Meu mundo desabou. Senti um nó na garganta.
Por sorte e ajuda de Deus, é óbvio, naquele momento o carro do prefeito ia passando em frente ao bar. Seu Mário apontou e disse:
— Olha o prefeito passando ali!
Não pensei duas vezes, corri e cheguei até o carro como um raio.
— Seu prefeito, o senhor não me disse que meu sapato ia tá aqui hoje de manhã? E comecei a chorar.
— Mas rapaz, Mago não comprou seu sapato não, foi? Eu balancei a cabeça afirmando que não.
Ele colocou o carro no acostamento e pegou o telefone. – Vou ligar para ele agora, espere aí.
Após alguns minutos, ele disse:
— Pode vir amanhã sem falta que seus sapatos estarão aqui.
Saí um pouco aliviada, mas confesso que ainda preocupada. Se na quinta já não dormi, imagine da sexta para o sábado!
Esperei o horário combinado e mais uma vez fui lá “na saga da bola de fogo” e na busca de um milagre. Respirei fundo e, chegando ao bar, não avistei seu Mário. Somente a filha dele, Angélica, estava no local.
— Seu pai tá aí? Alguém deixou uma encomenda para mim?
— Comigo não, mas peraí.
— Ôhh paai, entregaram alguma coisa para entregar a uma menina? Ela gritou.– Tá embaixo do balcão! De longe, ele respondeu.
— Meu Deus, eu não tô acreditando. Ele comprou!– Uma onda de sentimentos me tomou. Agora o desfile estava garantido, meu conga finalmente tinha chegado.
No entanto, surpresa maior me esperava. Quando Angélica se abaixou e colocou a encomenda sobre o balcão, percebi que a caixa era diferente e não acreditei quando li “TÊNIS MONTREAL”.Naquele momento fiquei paralisada. O tênis MONTREAL só era usado pelos jovens burgueses da cidade.
Ao chegar a casa dando pulos de alegria, mostrei a todos os meus irmãos o que eu tinha ganhado. Minha mãe ficou boquiaberta. Ela jamais imaginaria que a frase dela daria esse resultado.
No dia seguinte, a praça era pequena para minha “pomposidade” (risos).
Não sabia se olhava para os pés ou para o público. Só sabia de uma coisa: com certeza o meu primeiro VOTO SERIA PARA O PREFEITO NATANAEL.
- Nicy Alves escreve aos domingos na Tribuna da Praia
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