Há 57 anos, uma coluna militar saía de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro para tirar do poder o então presidente João Goulart. Saberíamos depois que, ao mesmo tempo, um contingente militar norte-americano entrincheirava-se na costa brasileira para garantir que a aventura golpista fosse até o fim. O conjunto de acontecimentos que antecederam o golpe militar e os que o sucederam fizeram desse momento um divisor de águas na história. O golpe arquitetado pelos Estados Unidos com todas as forças reacionárias e classes dominantes foi até o fim, estendendo-se por 21 anos de torturas, miséria e censura e deixando sua marca permanente na construção do Brasil.
A encruzilhada nos anos sessenta tinha dois resultados reais e possíveis. Um era o golpe das forças reacionárias para a implementação de um Estado contra insurgente capaz de realizar as reformas de modernização num quadro conversador. Outra era a possibilidade de uma vitória do bloco democrático e nacionalista, paralisando a reação pela execução das reformas de base e forçando o bloco progressista pelas demandas do proletariado industrial e pela radicalização do subproletariado rural. A crise de hegemonia dos anos 1960 era de tal ordem que a realização da primeira alternativa passou por anos de preparo, enquanto a segunda seguia sua marcha pelas próprias contradições em curso na sociedade e tendia à saída progressista na medida em que o aumento paulatino da participação popular na política – seja pelos partidos de massa ou nos movimentos sociais – ampliava a base das reivindicações e chegava nas “pedras de toque” da hegemonia burguesa. A ideologia identificou aqui um “transbordar da democracia”, que precisava ser corrigido com paus de arara e “geladeiras”.
A derrota das forças populares – não só aqui, mas na maioria de nosso subcontinente – abriu espaço para a modernização conservadora. Das universidades ao sistema financeiro, grandes transformações eram necessárias para que a superestrutura da sociedade brasileira se atualizasse ao mesmo tempo que desse as bases para um novo padrão de acumulação do capital. A aliança entre capital internacional, nacional e estatal integrava o país a novas cadeias de valor e permitia o estabelecimento de um desenvolvimento industrial interno coordenado e submetido ao imperialismo. Nessa nova fórmula de dominação política, os militares ocuparam um papel bem definido de intelectualidade orgânica, preparada tecnicamente para condução dos aparelhos econômicos do Estado e de um regime ditatorial e contra insurgente contra as classes populares e sua vanguarda.
Agora, novamente, vemos a iminência de um poder militar crescente na política brasileira – com ou sem Bolsonaro – e disso só podemos nos questionar: ele realmente deixou de existir? A democratização “lenta, gradual e segura” gestou o mais longo período democrático, cujo ponto máximo foi a emergência de uma fórmula de pacto com o campo democrático-popular. Mas, durante todo esse período, que relação tiveram os militares com esse Estado, criado por eles mesmos em décadas de controle sobre a máquina pública?
Os resquícios jurídicos permanecem, como nas listas tríplices para reitoria das universidades federais. Mas serão ainda maiores os resquícios ideológicos? Os políticos? Reais vínculos entre a cúpula militar e o grande capital monopolista? Um casamento de 21 anos não é tão facilmente esquecido… A aliança entre o bloco militar e as forças monopolistas mais reacionárias foi a aliança que sustentou o período de maiores transformações no aparelho estatal brasileiro. Cinquenta e sete anos depois, não é uníssona nossa burguesia sobre a necessidade de “reformas” do Estado? Não será curioso que dessa necessidade tenha saído um golpe cuja participação das cúpulas militares já foi confessada?
A Nova República se ergueu e desmorona sob a tutela dos militares. Produto de uma anistia criminosa em favor dos torturadores e de uma transição que garantiu imunidade ao consórcio militar-empresarial, nossa vertiginosa democracia mostra, sobretudo, seu formalismo puro. Uma democracia dos monopólios, em que o presidente destila ódio ao povo e garante sua sustentação no grande capital.
Nosso país é atualmente dirigido pelo produto ideológico de 21 anos de ditadura empresarial-miliar. Enquanto o esquecimento sobre os crimes da ditadura e o perdão aos seus culpados reinarem, o fedor dos porões voltará a subir aos palcos e comícios, na boca de Bolsonaros ou demais filhotes da ditadura.
por Leonardo Godim