A ÁGUA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E OS LIMITES DA QUANTIDADE E DA QUALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA

A ÁGUA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E OS LIMITES DA QUANTIDADE E DA QUALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA

CÍCERO BEZERRA DA SILVA
Doutorando e Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe – PPGEO/UFS
Membro do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura – PPGEO-UFS/CNPq

Problematiza-se o tema “água” frente ao contexto contemporâneo que está sendo vivenciado. Indaga-se: como pensar a superação de uma pandemia (COVID-19) em que o processo de higienização é fundamental quando parcela considerável do povo brasileiro sobrevive no limiar da quantidade e da qualidade da água?
Para tanto, é hábil perceber que há muito tempo a água tem sido transformada em recurso e que o acesso a ela pelas populações mais vulneráveis é, inegavelmente, insuficiente diante das demandas básicas da vida cotidiana. O Brasil, país de dimensões continentais, desfruta de aproximadamente 12% das águas doces do planeta Terra (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2020). No entanto, a taxa de disponibilidade não indica a qualidade e a quantidade na distribuição e no consumo, fator esse que historicamente tem se reverberado de modo ainda mais acentuado nas assimetrias regionais.
Naturalmente desigual, a distribuição das águas no Brasil se diferencia, e muito, da distribuição da população. O Norte do país, por exemplo, segundo a Agência Nacional de Águas (2020), concentra aproximadamente 80% do total de água disponível, mas representa pouco mais de 8% da população brasileira (IBGE, 2010). Já a faixa litorânea, área de maior densidade demográfica, reúne menos de 3% dos recursos hídricos disponíveis no país.
Essas disparidades entre oferta e demanda não “caminham” isoladas. Junto a isso encontram-se todo o processo de apropriação das águas frente às demandas unilaterais de interesses privados e a ausência (ou a ineficiência) de uma gestão participativa dos recursos hídricos. Em consonância com o mencionado e não menos importante, é possível citar os problemas relacionados à coleta e ao tratamento de efluentes domésticos e industriais, acarretando a poluição e a degradação das águas e dos reservatórios de superfície e subsuperfície.
A Lei 9.433 de 1997, conhecida como Lei das Águas do Brasil, foi responsável por instituir a Política Nacional de Recursos Hídricos e apresenta, em seus fundamentos, a água como recurso natural e bem de domínio público. Ao versar sobre os objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos, o artigo 2º, inciso I, assegura à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de Água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos (BRASIL, 1997). Quanto aos usos, por sua vez, no capítulo I (fundamentos), artigo I, inciso VI, é evidenciada a prioridade para o consumo humano e animal quando em situações de escassez.
Em conformidade com a Constituição Federal (1988), não existem águas particulares, os lagos, os rios e as demais correntes de água são de domínio da União (BRASIL, 1988). Essa compreensão dá respaldo à premissa da água como um bem e recurso de domínio público, ou seja, inapropriável, como ressaltado anteriormente na Lei 9.433/1997.
Mais recentemente, no ano de 2018, foi aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 4, de 2018), que inclui o acesso à água potável entre os direitos e as garantias fundamentais ao povo brasileiro (atualmente, encontra-se em tramitação no Senado Federal).
Sabiamente, na PEC nº 4, de 2018, estão considerados os princípios quanto à necessidade de tomada da água enquanto um direito fundamental à dignidade humana, pensada para além de “elemento recurso”, fonte de disputas, conflitos e apropriações diversas. Enfatiza-se ainda os limites da quantidade e da qualidade que nem sempre é satisfatório à devida manutenção das atividades humanas, fato consumado nos dias atuais.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), divulgada recentemente pelo IBGE (2020), quase 10% dos domicílios brasileiros não dispunham, no ano de 2019, de abastecimento contínuo de água. A severidade da realidade colocada é ainda mais preocupante quando, em um simplório “jogo de escalas”, se lançam olhares para as realidades regionais e suas especificidades. No Nordeste, para exemplificar, um em cada quatro domicílios não contava, no ano de 2019, com o abastecimento diário de água.
As Pesquisas por Amostras de Domicílios realizadas pelo IBGE demonstram que, nos últimos anos, obteve-se crescente melhoria no abastecimento e no acesso contínuo à água, principalmente nas regiões Nordeste e Norte. Todavia, são avanços ainda débeis frente às necessidades da população, sobretudo daquelas em estado de vulnerabilidade, como bem considerado na PEC no 4, de 2018.
O conjunto de dados disponibilizados pelo Portal Saneamento Básico, observatório voltado ao tratamento de informações e à divulgação de dados voltados exclusivamente ao setor do saneamento básico e ambiental no Brasil, demonstra que o orçamento do Governo Federal para esses fins deve sofrer queda de aproximadamente 21% no corrente ano de 2020. Paradoxalmente às necessidades da população, aparenta-se ter sido deixada de lado a compreensão de que investir em saneamento é, fundamentalmente, investir em saúde e melhorias nas condições de vida da população.
A universalização do acesso ao saneamento, assim como o abastecimento de água e o esgotamento sanitário a ser realizado de modo adequado à saúde pública, são garantias fundamentais previstas na Lei 11.445/2007. A universalização de acesso ao saneamento básico, embora distante de muitos lares brasileiros, representa a possibilidade de acesso à água em quantidade e qualidade e ao tratamento de esgotos e resíduos sólidos em suas diversas variações.
A “conta” que se paga pela ausência do saneamento básico não tem sido baixa, e o valor diz respeito à própria vida. A revista Em Discussão (n. 27, 2016), do Senado Federal, destaca a estreita ligação entre as arboviroses causadas pelo Aedes aegypti e o saneamento básico, ou melhor, a ineficiência do poder público, pondo em xeque os problemas voltados à infraestrutura para águas, esgotos e resíduos sólidos. Das muitas doenças transmitidas por veiculação hídrica, para além das arboviroses derivadas do Aedes aegypti (dengue, zika e chicungunha), podem ser mencionadas, ainda, as diarreias infecciosas, a leptospirose, as hepatites, a esquistossomose, entre tantas outras.
Em pesquisa recentemente publicada pela revista científica Memórias (abril de 2020), do Instituo Oswaldo Cruz, importante alerta foi feito quanto à presença de partículas do SARS-CoV-2, vírus causador da epidemia do novo coronavírus, no esgotamento sanitário da cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Porém, os pesquisadores chamam atenção para o fato de que “até onde se sabe, não há evidências diretas para provar que o SARS-CoV-2 detectado no sistema de esgoto é infeccioso e contagioso. Portanto, é cedo para declarar que as águas residuais podem ser declaradas uma importante via de transmissão” (PRADO et al., 2020, p. 4-5, tradução livre).
Dado o exposto, a água como solvente universal tem ocupado centralidade nas discussões inerentes à pandemia do novo coronavírus que está sendo vivenciada. Pensar e problematizar a água em termos de quantidade e qualidade, assim como o devido acesso a ela pela população, é uma das condições necessárias ao processo de superação da crise na qual a população está inserida.
Saldos e aprendizados: a pandemia do novo coronavírus tem escancarado muitos dos problemas que historicamente assolam o país. O acesso à água quantitativo qualitativamente tem sido um dos mais perceptíveis, inclusive com grande veiculação pela mídia. Associadas aos serviços básicos de saneamento e infraestrutura, salienta-se que essas são demandas sociais inadiáveis, um compromisso com a própria vida e com a dignidade humana.
“Para além do tratamento, a prevenção é essencial para conter a disseminação do vírus” (DULTRA; SMIRDELE, 2020, p. 50). Esse alerta foi dado, também, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao reforçar a necessidade de adoção/intensificação dos atos de higienização pelo uso da água, seja pelo uso individual ou coletivo no ambiente domiciliar, seja pela limpeza de espaços e vias públicos, o acesso à água é apresentado como fundamental à mitigação da pandemia.
Dado o alerta, é cabível salientar a necessidade emergente da universalização de acesso à água e, com ela, o acesso às condições básicas de saneamento. Os saldos históricos do descaso e da ineficiência desses serviços nunca foram tão visíveis, e, por consequência, a práxis de uma possível superação nunca foi tão necessária. Cabe, agora, entre os saldos e os aprendizados, em dias de turbulências outras e de descompromisso social, o rompimento do pensar a água pelo viés utilitarista e de mercado e entendê-la como mecanismo de vida e dignidade humanas.
REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS. Panorama das Águas. Disponível em: <https://www.ana.gov.br/panorama-das-aguas/quantidade-da-agua>. Acesso em: 10 maio 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 abr. 2020.

______. Casa Civil. Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm>. Acesso em: 10 maio 2020.

______. Casa Civil. Lei 11. 445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as Diretrizes Nacionais Para o Saneamento Básico e dá outras providências. Disponível em: <https://www.ana.gov.br>. Acesso em: 12 maio 2020.

DUTRA, Joisa; SMIRDELE, Juliana. Água e Saneamento na Pandemia da Covid-19 – Desafio e Oportunidade. Conjuntura Econômica, Abril 2020. Disponível em: <https://ceri.fgv.br/blog/agua-e-saneamento-na-pandemia-da-covid-19>. Acesso em: 10 maio 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo 2010. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em: 12 maio 2020.

______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD). Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html>. Acesso em: 12 maio 2020.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Folha Informativa. Disponível em: <https://www.who.int/es>. Acesso em: 10 maio 2020.

PORTAL SANEAMENTO BÁSICO. Orçamento do Governo Federal Prevê Queda nos Recurso para Saneamento. Disponível em: <https://www.saneamentobasico.com.br/governo-recursos-saneamento-basico/>. Acesso em: 10 maio 2020.

PRADO, Tatiana et al. Preliminary results of SARS-Cov-2 detection in sewerage system in Niterói municipality, Rio de Janeiro, Brazil [Submitted]. Mem Inst Oswaldo Cruz [E-pub], 28 Apr. 2020.

SENADO FEDERAL. Saneamento: a linha divisória da saúde pública. Revista Em Discussão, n. 27, 2016.

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